Primeira biografia

A primeira biografia sobre Aleijadinho foi  escrita em 1858 por Rodrigo José Ferreira Bretas, 28 anos após a morte do artista e  traz muitas informações sobre o mestre.Seu  relato ainda é muito importante para entender a vida de Aleijadinho. Essa  biografia se baseou em documentos de arquivos e ,em parte,   em uma entrevista que o autor fez com Joana, nora de Aleijadinho, que o acolheu em seus dois últimos anos de vida, já bastante doente e acamado. Desde a sua publicação este “documento” rendeu copiosa literatura sobre Aleijadinho e a arte colonial, sendo ainda hoje alvo de fervorosos debates quando sua veracidade é colocada em dúvida. Ela  foi redescoberta no início do século 20 e hoje tem seu significado  definitivamente reconhecido para a cultura brasileira.

 

Rodrigo José Ferreira Bretas

O biógrafo do Aleijadinho – Rodrigo José Ferreira Bretas – nasceu em Cachoeira do Campo em 1815, forma-se em humanidades nos Colégios do Caraça e Congonhas do Campo e entre 1839 e 1844 lecciona latim, filosofia e retórica em Barra Longa, Barbacena e Ouro Preto, além de ter sido nomeado Promotor Interino da Comarca. Entre 1846 e 1849 funda e dirige um colégio em Bonfim do Paraopeba; nomeado Oficial Maior da Secretaria do Governo da Província em 1850; eleito deputado provincial para o primeiro de quatro mandatos em 1852; publica um livro sobre as origens das ideias do espírito humano em 1854; agraciado com a nomeação de Cavaleiro da Imperial Ordem da Rosa em 1855; instala a Biblioteca Pública de Ouro Preto em 1859; nomeado Inspector da Instrução Pública em Ouro Preto em 1861; e em 1862 assume da direcção do Colégio de Congonhas. Além de professor e político Rodrigo Ferreira Bretas foi um eminente inventor. Faleceu em 1866.

 

A Biografia:

 

TRAÇOS BIOGRÁFICOS RELATIVOS AO FINADO ANTÔNIO FRANCISCO LISBOA,DISTINTO ESCULTOR MINEIRO, MAIS CONHECIDO PELO APELIDO DE ALEIJADINHO

Antônio Francisco Lisboa nasceu a 29 de agosto de 1730 no arraial desta cidade que se denomina — o Bom Sucesso, per­tencente à freguesia de Nossa Senhora da Conceição de Antônio Dias. Filho natural de Manuel Francisco da Costa Lisboa, distinto arquiteto português, teve por mãe uma africana, ou crioula, de nome Isabel, e escrava do mesmo Lisboa que o libertou por ocasião de fazê-lo batizar.

Antônio Francisco era pardo escuro, tinha a voz forte, a fala arrebatada e o gênio agastado; a estatura era baixa, o corpo cheio e mal configurado, o rosto e a cabeça redon­dos, e esta volumosa; o cabelo preto e anelado, o da barba cerrado e basto; a testa larga, o nariz retangular e algum tanto pontiagudo, os beiços grossos, as orelhas grandes e o pescoço curto. Sabia ler e escrever, e não consta que ti­vesse frequentado alguma outra aula além da de primeiras letras, embora alguém julgue provável que tivesse frequen­tado a de latim.

O conhecimento que tinha do desenho, de arquitetura e escultura fora obtido na escola prática de seu pai e, tal­vez, na do desenhista pintor João Gomes Batista que, na corte do Rio de Janeiro, recebera as lições do acreditado artista Vieira, e era empregado como abridor de cunhos das casas de fundição de ouro desta capital.

Depois de muitos anos de trabalho, tanto nesta cida­de como fora dela, sob as vistas e risco do pai, que então era tido na província como o primeiro arquiteto, encetou Antônio Francisco a sua carreira de mestre de arquitetura e escultura, e nesta qualidade excedeu a todos os artistas deste gênero que existiram em seu tempo. Até a idade de 47 anos, em que teve um filho natural, ao qual deu o mes­ mo nome de seu pai, passou a vida no exercício de sua arte, cuidando sempre em ter boa mesa e no gozo de perfeita saúde; e tanto que era visto muitas vezes tomando par­te nas danças vulgares. De 1777 em diante, as moléstias, provindas, talvez, em grande parte, de excessos venéreos, começaram a atacá-lo fortemente. Pretendem uns que ele sofrera o mal epidêmico que, sob o nome de Zamparina, pouco antes havia grassado nesta província e cujos resídu­os, quando o doente não sucumbia, eram quase infalíveis deformidades e paralisias; e outros que nele se havia com­plicado o humor gálico com o escorbútico. O certo é que, ou por ter negligenciado a cura do mal no seu começo, ou pela força invencível do mesmo, Antônio Francisco perdeu todos os dedos dos pés, do que resultou não poder andar senão de joelhos; os das mãos atrofiaram-se e curvaram, e mesmo chegaram a cair, restando-lhe somente, e ainda assim quase sem movimento, os polegares e os índices. As fortíssimas dores que de contínuo sofria nos dedos e a acrimônia do seu humor colérico o levou, por vezes, ao ex­cesso de cortá-los ele próprio, servindo-se do formão com que trabalhava(1)! As pálpebras inflamaram-se e, permane­cendo nesse estado, ofereciam à vista sua parte interior; perdeu quase todos os dentes e a boca entortou-se como sucede frequentemente ao estuporado, o queixo e o lábio inferior abateram-se um pouco; assim o olhar infeliz adqui­riu certa expressão sinistra e de ferocidade, que chegava mesmo a assustar a quem quer que o encarasse inopinada­mente. Esta circunstância e a tortura da boca o tornavam de um aspecto asqueroso e medonho (2).

Quando em Antônio Francisco se manifestaram os efeitos de tão terrível enfermidade, consta que certa mu­lher de nome Helena, moradora da rua do Arelão ou carra picho desta cidade dissera que ele havia tomado uma gran­de dose de cardina (3) (assim denominou a substância a que se referia) com o fim de aperfeiçoar seus conhecimentos artísticos, e que daí lhe havia provindo tão grande mal.

A consciência que tinha Antônio Francisco de desa­gradável impressão que causava sua fisionomia o tornava intolerante e mesmo iroso para com os que lhe parecia ob­servarem-no de propósito; entretanto era ele alegre e jovial entre as pessoas de sua intimidade.

Sua prevenção contra todos era tal que, ainda com as maneiras agradáveis de tratá-lo, e com os próprios louvo­res tributados à sua perícia de artista, ele se molestava, julgando irônicas e expressivas de mofa e escárnio todas as palavras que neste sentido lhe eram dirigidas. Nestas circunstâncias costumava trabalhar às ocultas debaixo de uma tolda, ainda mesmo que houvesse de fazê-lo dentro dos templos. Conta-se que um general (talvez D. Bernardo José de Lorena), achando-se em certo dia a presenciar de perto seu trabalho, fora obrigado a retirar-se pelo incômo­do que lhe causaram os granitos da pedra em que escul­tava o nosso artista e que este deliberadamente fazia cair sobre o importuno espectador.

Possuía um escravo africano de nome Maurício que trabalhava como entalhador e o acompanhava por toda a parte; era este quem atava os ferros e o macete às mãos imperfeitas do grande escultor que, desde esse tempo, fi­cou sendo geralmente conhecido pelo apelido de – Aleijadi­nho. Tinha um certo aparelho de couro, ou madeira, conti­nuamente aplicado aos joelhos, e neste estado admirava-se a coragem e agilidade com quem ousava subir pelas mais altas escadas de carpinteiro.

Maurício era sempre meeiro com o Aleijadinho nos salários que este recebia por seu trabalho. Era notável nes­te escravo tanta fidelidade a seus deveres que, entretanto, tinha por senhor um individuo ate certo ponto fraco, e que muitas vezes o castigava rigorosamente com o mesmo ma­cete que lhe havia atado às mãos. Alem de Maurício tinha ainda – o Aleijadinho – dois escravos de nomes Agostinho e Januário; aquele era também entalhador e este quem lhe guiava o burro em que andava, e nele o colocava.

la à missa sentado em uma cadeira tirada de um modo particular por dois escravos, mas quando tinha que ir à Matriz de Antônio Dias, a que esta estava contígua a casa em que residia, era levado às costas de Januário. Depois da fatal enfermidade que o acometeu trajava uma sobrecasa­ca de pano grosso azul que lhe descia até abaixo dos joe­lhos, calça e colete de qualquer fazenda; calçava sapatos pretos de forma análoga aos pés e trazia, quando a cavalo, um capote também de pano preto, com mangas, gola em pé e cabeção, e um chapéu de lã parda braguês, cujas lar­gas abas estavam presas à copa por dois colchetes.

O cuidado de furtar-se às vistas de pessoas estranhas dera-lhe o hábito de ir de madrugada para o lugar em que tinha de trabalhar, e voltar a casa depois de fechada a noite e, quando devia fazê-lo antes, notava-se-lhe algum esforço o empenho de alguém que sobre ele quisesse de­morar suas vistas.

Entrando-se agora na apreciação do mérito do – Alei­jadinho – como escultor e entalhador, tanto quanto pode fazê-lo quem não é profissional na matéria, e somente à vista das obras que deixou na capela de São Francisco de Assis desta cidade, cuja planta é sua, reconhece-se que ele mereceu a nomeada de que gozou, atendendo-se principal­mente ao estado das artes no seu tempo, à falta que sentiu de mestres científicos, e dos princípios indispensáveis a quem aspira à máxima perfeição nos referidos gêneros, e, sobretudo, às desvantagens contra as quais ultimamente lutava em consequência da perda de membros necessários à execução de seus trabalhos.

São obras do – Aleijadinho – a talha e escultura prati­cada no frontispício da referida capela, os dois púlpitos, o chafariz da sacristia, as imagens das três pessoas da SS. Trindade e dos anjos que se veem no cimo do altar-mor, a talha deste e bem assim a escultura alusiva à ressurreição de Cristo que se vê na frente da urna do altar-mor, a figu­ra do Cordeiro que se acha sobre o sacrário e, finalmente, toda a escultura do teto da capela-mor.

Apenas atenta-se para estes trabalhos, depara-se logo com o gênio incontestável do artista, mas não se deixa de reconhecer, também, que ele foi melhor inspirado do que ensinado e advertido; porquanto o seu desenho ressente-se, às vezes, de alguma imperfeição.

No relevo que representa São Francisco de Assis re­cebendo as chagas vê-se que ele tem no corpo e no sem­blante a atitude e a expressão próprias de uma situação tão importante. Junto do santo vê-se, esculpida, uma açucena, cujas hastes caem tão lânguidas e pois tão naturalmente que por isso não se pode deixar de vitoriar o artista.

Na frente do púlpito que fica ao lado esquerdo do templo para quem nele entra pela porta principal, vê-se Jesus Cristo sobre uma barca pregando às turbas no mar de Tiberíade. Os vultos que representam o povo têm o ar de quem presta séria atenção, mas o Salvador não tem aí a majestade que se divisava sempre no seu rosto.

Na frente do púlpito do lado oposto acha-se represen­tado um outro assunto tirado do Velho Testamento. É o Profeta Jonas no ato de ser lançado ao mar, e prestes a ser engolido por uma baleia, que faminta o aguarda.

Eis o resumo da respectiva legenda: Jonas achava-se embarcado, quando sobreveio uma tempestade que ame­açava submergir o navio, e tendo alguém pensado que era castigo do Senhor, infligido a algum pecador que nele se achasse, O profeta denunciou o delito que havia cometido, deixando de ir pregar na cidade de Nínive, como o mesmo Senhor lhe havia ordenado, e pediu que o lançassem ao mar, a fim de serenar a tempestade.

Este grupo parece bem desempenhado. Aos lados de cada um dos púlpitos, veem-se dois dos quatro Apósto­los Evangelistas, cujos nomes são indicados pelas figuras alegóricas da visão do Profeta Ezequiel, a saber, o Anjo junto a S.Mateus, o leão a S. Marcos, o boi a S. Lucas, e a águia a S. João. Todos eles têm o ar de quem recebe as divinas inspirações.

No chafariz, vê-se bem esculpida a imagem da Fé, a qual, com a expressão vaga da cegueira que lhe é própria, apresenta num retábulo o seguinte pentârnetro: “Hoec est ad Coelum quae via ducit oves”.

Abaixo, e aproximadamente à pia, veem-se, de um e outro lado, pescoço e rosto de um Cervo, por cuja boca deve correr água. O retábulo que os encobre oferece à vista o seguinte hexâmetro: “Ad Dominum carro, sitiens, ut cervus ad undas”.

Juízo igualmente favorável se deve fazer da execução das demais imagens e esculturas, em vulto ou em relevo, que saíram das mãos do mesmo artista, e acham-se na re­ferida capela.

Também é obra do – Aleijadinho – a imagem de S. Jor­ge, que anualmente costuma sair a cavalo na procissão de Corpus Christi nesta cidade.

A respeito da encomenda desta obra deu-se o seguinte fato:

O general D. Bernardo José de Lorena, atendendo a que era mui pequena a imagem do dito santo que então havia, deu ordem a que viesse à sua presença o Aleija­dinho, que devia ser encarregado de construir outra. O estatuário compareceu em palácio depois de muitas instâncias para o fazer. Logo que o viu o coronel José Romão, ajudante de ordens do general, exclamou ele re­cuando: Feio homem! Ao que disse em tom áspero An­tônio Francisco, ameaçando retirar-se: É para isso que S. Excia. ordenou-me que aqui viesse?

O general, que logo apareceu, tranquilizou o artista e pode entrar com ele em detalhes relativos à imagem de São Jorge que, declarou devia ser o grande vulto e, tendo tomado para exemplo o do dito ajudante de ordens que se achava presente, o Aleijadinho voltando-se para este e re­tribuindo a ofensa dele, disse duas vezes meneando a ca­beça e com ar displicente: Forte arganaz! Forte arganaz!

Pretende-se que, quando o artista deu por acabada a imagem, não houve quem nela não deixasse de reconhecer uma cópia fiel do dito José Romão, que, formando o mes­mo juízo, em vão opôs-se a que ela saísse nas procissões.

Acrescentam a isto que o talento do retratista era nele mui pronunciado, e que várias outras imagens construiu, de propósito representando exatamente vulto e feições de certas pessoas. Nas esculturas do Aleijadinho observa-se sempre, mais ou menos bem-sucedida, a intenção de um verdadeiro artista, cuja tendência é para a expressão dum sentimento ou de uma ideia, alvo comum de todas as ar­tes (4). Faltou-lhe, como já se disse, o preceito da arte, mas sobrou-lhe a inspiração do gênio e do espírito religioso (5 ).

No ano de 1790 era este artista julgado como se verá do seguinte trecho de um artigo escrito pelo capitão Joa­quim José da Silva, 2° vereador do senado da câmara da cidade de Mariana no dito ano, e que se lê no respectivo livro de registro de fatos notáveis, estabelecido pela ordem régia de 20 de junho de 1782:

“A matriz de Ouro Preto, arrematada por João Fran­cisco de Oliveira pelos anos de 1720, passa por um dos edifícios mais belos, regulares e antigos da comarca. Este templo, talvez desenhado pelo sargento-mor engenheiro Pedro Gomes, foi construído e adornado interiormen­te por Antônio Francisco Pombal com grandes colunas da ordem coríntia, que se elevam sobre nóbres pedestais a receber a cimalha real com seus capitéis e ressaltos ao gênio de Scamozzi. Com a maior grandeza e soberba ar­quitetura traçou Manuel Francisco Lisboa (6), irmão daquele Pombal, de 1727 por diante, a igreja matriz da Conceição, da mesma vila, com 12 ou 13 altares e arcos majestosos, debaixo dos preceitos de Vignola. Nem é inferior à cate­dral matriz do Ribeirão do Carmo, arrematada em 1734 por Antônio Coelho da Fonseca, cujo prospecto e fachada correspondem à galeria, torres e mais decorações de arte. Quem entra pelo seu pórtico e observa a distribuição dos corredores e naves, arcos da ordem compósita, janela, ócu­los e barretes da capela-mor, que descansam sobre quatro quartões ornados de talha, capitéis e cimalha lavrada, não pode desconhecer a beleza e exação de um desenho tão bem pensado. Tais são os primeiros modelos em que a arte excedeu a matéria.

Pelos anos de 1715 ou 1719 foi proibido o uso do cinzel para se não dilapidarem os quintos de Sua Majestade, e por ordem régia de 20 de agosto de 1738 se empregou o esco­pro de Alexandre Alves Moreira e seu sócio na cantaria do palácio do governo, alinhado toscamente pelo engenheiro José Fernandes Pinto Alpoim com baluartes, guaritas, ca­labouço, saguão e outras prevenções militares. Nesta casa forte e hospital de misericórdia, ideada por Manuel Francis­co Lisboa com ar jônico, continuou este grande mestre as suas lições práticas de arquitetura que interessaram a muita gente. Quanto porém, excedeu a todos no desenho o mais doce e mimoso João Gomes Batista, abridor da fundição, que se educou na Corte com o nosso imortal Vieira; tanto promoveu a cantaria José Ferreira dos Santos na Igreja do Rosário dos Pretos de Mariana, por ele riscada; e nas igrejas de S. Pedro dos Clérigos e Rosário de Ouro Preto, delineadas por Antônio Pereira de Sousa Calheiros ao gosto da rotunda de Roma. Com este José Pereira se ilustraram outro José Pe­reira Arouca, continuador do seu desenho e obra da ordem 3ª desta cidade, cuja esbelta cadeia se deve à sua direção, e Francisco de Lima, hábil artista de outra igreja Francis­cana do Rio das Mortes. O aumento da arte se afigura de sorte que a matriz de Caeté, feita por Antônio Gonçalves Barcarena, debaixo do risco do sobredito Lisboa, cede nas decorações e medidas à matriz de Morro Grande, delineada por seu filho Antônio Francisco Lisboa, quanto este homem se excede mesmo no desenho da indicada igreja do Rio das Mortes, em que se reúnem as maiores esperanças.

Este templo, e a suntuosa cadeia de Vila Rica, come­çada por um novo Manuel Francisco, em 1785, com igual segurança e majestade, me levariam mais longe se os gran­des estudos e modelos de escultura feitos pelo filho e dis­cípulo do antigo Manuel Francisco Lisboa e João Gomes Batista não prevenissem a minha pena.

Com efeito, Antônio Francisco, o novo Praxíteles, é quem honra igualmente a arquitetura e escultura. O gos­to gótico de alguns retábulos transferidos dos primeiros alpendres e nichos da Piedade já tinha sido emendado pelo escultor José Coelho de Noronha, e estatuário Fran­cisco Xavier, e Felipe Vieira, nas matrizes desta cidade e Vila Rica.

Os arrogantes altares da catedral, cujas quartelas, co­lunas atlantes, festões e tarjas respiram o gosto de Frede­rico; a distribuição e talha do coro do Ouro Preto relevada em partes, as pilastras, figuras e ornamentos da capela-mor, tudo confirma o melhor gosto do século passado.

Jerônimo Félix e Felipe Vieira, êmulos de Noronha e Xavier, excederam na exação do retábulo principal da ma­triz de Antônio Dias da mesma vila o confuso desenho do doutor Antônio de Souza Calheiros; Francisco Vieira Selval e Manuel Gomes, louvados da obra, pouco diferem de Luiz Pinheiro e Antônio Martins que hão feito as talhas e ima­gens dos novos templos.

Superior a tudo e singular nas esculturas de pedra em todo o vulto ou meio relevado e no debuxo e ornatos ir­regulares do melhor gosto francês é o sobredito Antônio Francisco. Em qualquer peça sua que serve de realce aos edifícios mais elegantes, admira-se a invenção, o equilíbrio natural, ou composto, a justeza das dimensões, a energia dos usos e costumes e a escolha e disposição dos acessórios com os grupos verossímeis que inspira a bela natureza.

Tanta preciosidade se acha depositada em um corpo enfermo, que precisa ser conduzido a qualquer parte e atarem-se-lhe os ferros para poder obrar”.

Na época a que se refere o trecho acima transcrito, al­gumas artes liberais estavam talvez em maior florescência do que hoje nesta província.

Ou porque, à falta de liberdade política, como su­cede ainda na Itália, a tendência dos espíritos, ou a sua atividade não podia ter outro alvo, ou porque o espírito religioso dos colonos, favorecido pela riqueza de então, um dos mais poderosos meios de realizar grandes coisas, dava ocasião ou incentivo eficaz para semelhantes estu­dos, o certo é que os nossos antepassados deixaram-nos em escultura, música e arquitetura monumentos dignos de uma civilização assaz adiantada.

Sabe-se que o Cristianismo é eminentemente civili­zador; a ele se deveu na Europa a restauração as. letras e das ciências, que a invasão dos bárbaros parecia ter por uma vez aniquilado; não é menos certo que o entusiasmo religioso, como todas as paixões nobres e elevadas, é inspi­rador de grandiosas coisas; e, pois, muito natural era que a escultura e pintura sacras tivessem entre nós o desenvolvi­mento que lhes reconhecemos. O fervor piedoso dos refe­ridos tempos tem o seu tipo na grandeza e magnificência quase fabulosas (bem que entremeadas de cenas ou alego­rias profanas) da trasladação do Santíssimo Sacramento da igreja do Rosário para a nova matriz de Ouro Preto, que se intitulou TRIUNFO EUCARÍSTICO.

O Aleijadinho exerceu sua arte nas capelas de São Francisco de Assis, de N. S. do Carmo e na das Almas desta cidade; na Matriz e capela de São Francisco da cida­de de São João DeI Rei; nas Matrizes de São João do Morro Grande e da cidade de Sabará; na capela de São Francisco de Mariana; em ermidas das fazendas da Serra Negra, Ta­bocas e Jaguará do sito termo de Sabará; e nos templos de Congonhas, deste ultimo termo, e de Santa Luzia.

Há quem afirme que é em Congonhas do Campo, e em São João DeI Rei que se devem procurar suas obras-primas, fazendo especial menção da magnífica planta da capela de São Francisco daquela cidade e do Bem-acabado da escul­tura e talha do respectivo frontispício.

Desde que um indivíduo qualquer se torna célebre e admirável em qualquer gênero, há quem, amante do mara­vilhoso, exagera indefinidamente o que nele há de extraor­dinário; e das exagerações que se vão depois sucedendo e acumulando, chega-se a compor, finalmente, uma entidade verdadeiramente ideal. É isto o que, pode-se dizê-lo, até certo ponto aconteceu a Antônio Francisco, de quem se conta o seguinte caso:

Tendo ido à corte do Rio de Janeiro, pediu que se lhe confiasse a construção da porta principal de certo templo que se concluía foi isso julgado de muita ousadia da parte de um desconhecido e contra o qual depunham as apa­rências. Entretanto, foi-lhe encarregada a obra. Concluída uma das metades da porta, o artista, em certa noite e furtivamente, a colocou no competente lugar. No dia se­guinte foi o seu trabalho julgado acima de todos os outros do mesmo gênero, e não havendo artista que se animasse a completá-la, em vista do extraordinário mérito de sua execução, foi mister que para o fazer procurasse por toda a cidade o desconhecido gênio que, afinal, e depois de muitos esforços foi encontrado (7).

Com o mesmo fim de demonstrar a perícia deste es­cultor, conta-se que algumas mulheres, tendo ido a Ma­tosinhos de Congonhas do Campo, na ocasião em que passavam por junto do Passo da Ceia, cumprimentavam as figuras que ali representam Cristo com os Apóstolos, o que, a ser devido somente ao bem-acabado da escultura, nos induziria a comparar as obras do nosso patrício com os cachos d’uvas de Zeuxis (famoso pintor da Antigui­dade) que os pássaros feriam com o bico crendo serem frutos reais.

O Aleijadinho não ajuntou fortuna alguma no exercício de sua arte; além de que partilhava igualmente o que ga­nhava com o escravo Mauricio (8), era descuidado na guarda de seu dinheiro, que de continuo roubavam-lhe, e muito despendia em esmolas aos pobres.

Tendo passado cartas de liberdade aos escravos acima declarados, e bem assim a uma escrava de nome Ana, as quais tinha fechadas em uma caixa, os interessados lhas roubaram para, talvez, as lançarem no livro de notas. É certo, entretanto, que estes libertos não entraram no gozo da liberdade durante a vida do senhor benfeitor (9).

Antônio Francisco trabalhava a jornal de meio oitava de ouro por dia. Quando concluiu as obras da capela do Carmo, das quais se havia primeiramente encarregado, queixou-se de ter recebido o seu salário em ouro falso. Posteriormente, pelos anos de 1811 a 1812, um seu discípulo de talha, de nome Justino, tendo-se encarregado da construção de alta­res da dita capela, pode obter depois de muitas instâncias, que ele fosse inspecionar e dirigir os trabalhos; e foi residir na casa em que então existia contígua e pertencente aquele santuário. Por ocasião dos dias santos de natal, Justino reti­ra-se para a rua do Alto Cruz, onde tinha a família, deixando ali seu mestre, que, durante muitos dias, por descuido do discípulo, não teve aquele tratamento e cuidados a que esta­va acostumado. Com este fato coincidiu o de perder quase inteiramente a vista o nosso famoso escultor.

Neste estado recolheu-se à sua casa, sita na rua Detrás de Antônio Dias ( 10 ) da qual depois de algum tempo, mu­dou-se definitivamente para a de sua nora de nome Joana, que dele tratou caridosamente até seu falecimento, o qual teve lugar dois anos depois de seus últimos trabalhos de inspeção na capela do Carmo, a 18 de novembro de 1814, tendo de idade 84 anos, 2 meses e 21 dias.

Justino só tinha pagado a seu mestre uma mui peque­na parte do salário de um ano que lhe pertencia, e pois, desde então até o fim de sua vida, a mofina do mestre nos seus solilóquios era exigir tio discípulo o que lhe era devi­do. Durante o tempo em que esteve entrevado, frequentes vezes apostrofava à imagem do Senhor que tinha em seu aposento, e tanta as vezes havia esculpido, pedindo-lhe que sobre ele pusesse os seus divinos pés.

É natural que então a vida de sua inteligência em grande parte consistisse em recordação de seu brilhante passado de artista, ele se transportaria muitas vezes, em espírito, ao Santuário de Matosinhos, para ler profecias no semblante dos inspirados do Velho Testamento, cujas figu­ras tinham sido ali obradas por seu escopo; a memorar nos três Passos da Paixão, que escultara, a bondade e a resignação do Salvador quando preso e osculado pelo apóstolo traidor, a mais solene das ceias, ou a instituição do sacra­mento da eucaristia e a angústia da vítima celestial con­trastando o sono profundo e tranqüilo dos três apóstolos no horto de Getsêmani!

Vive ainda a nora do Aleijadinho( l 1), e bem que em mau estado, existe também a casa em que este faleceu; num dos pequenos departamentos interiores dela vê-se o lugar em que, deitado sobre um estrado jazeu por quase dois anos, tendo um dos lados horrivelmente chagado, aquele que, por suas obras de artista distinto, tanto havia honrado a sua pátria!

Tanta miséria ousando aliar-se a tanta poesia!

Antonio Francisco acha-se sepultado na Matriz de Antonio Dias desta cidade. Descansa em uma sepultura contígua e fronteira ao altar da Senhora da Boa Morte, de cuja festa pouco antes tinha sido juiz.

Rodrigo José Ferreira Bretas – Historiador -1858

 

 

NOTAS

  1. Colocava convenientemente o formão sobre o dedo que ti­nha de cortar e ordenava a um de seus escravos, que eram oficiais ou aprendizes de talha, que sobre ele desse uma forte pancada de macete.
  2. Conta-se que, tendo comprado um preto boçal de nome Januá­rio, atentara este contra a própria vida, servindo-se de uma nava­lha, tendo dito antes que o fazia para não se ver obrigado a servir a um senhor tão feio. O mal foi evitado a tempo e mais tarde foi este preto um bom escravo.
  3. Pretendem alguns que a charlatanería desse tempo anunciava à venda uma substância que tinha a virtude de aumentar as forças da inteligência, ou de extinguir a capacidade de sentir por um ór­gão, e dar assim ocasião a que se tornasse mais ampla a que era relativa aos outros.
  4. A escultura, como as demais artes, começou a ser mais sen­timental e ideal em França no século XVII, depois que a filoso­fia espiritualista de Descartes prevaleceu sobre a sensualista de Locke.
  5. Entusiasta da escritura sagrada, sua leitura favorita era a Bíblia. Também se diz que a de autores em medicina.
  6. Embora a diferença do agnome, há fundamento para dizer-se que o nome Manuel Francisco Lisboa, e o de Manuel Francisco da Costa, que se acha no assento de batismo relativo ao Aleijadinho, pertencem ao mesmo indivíduo. No dito assento suprimiu-se o cognome Lisboa, e no trecho que acima se transcreve, o agnome O nome, pois, do pai do Aleijadinho era – Mandei Francisco da Costa Lisboa.
  7. É certo que Antônio Francisco ali esteve em 1776 ( interessava- se então numa apelação interposta por Narcisa de tal, cabra forra da qual havia ele tido o filho de que já se tratou); mas uma pessoa a quem ele contava todas as circunstâncias de sua viagem e esta­da na Corte não dá notícias deste fato.
  8. Este escravo faleceu em Congonhas do Campo quando seu senhor escultava os Profetas e os Três Passos da Ceia, da Prisão e do Horto, que se vêm junto do Santuário de Matozinhos.
  9. Manuel Francisco Lisboa tinha da mãe do Aleijadinho mais dois filhos, e alguns outros houvera de legítimo matrimônio. Entre estes achava-se o padre Félix Antônio Lisboa, que faleceu nesta cidade a 30 de maio de 1830. Tinha-se aplicado à estatuária, sob as vistas do Aleijadinho, que dele dizia que só podia escultar car­rancas e nunca – “imagens”. – Entretanto, diz-se ter sido obra sua, sofrivelmente executada, a imagem de S. Francisco que existe na respectiva capela. Afirma-se que o dito padre Félix fora instruído, para o fím de receber ordens sacras, a expensas do mesmo Aleija­dinho, a quem tratava com deferência.
  10. Esta casa foi ultimamente demolida; o respectivo terreno acha-se fronteiro aos fundos da casa do cidadão major Joaquim José de Oliveira.
  11. É conhecida pela parteira Joana Lopes; cuja idade provável é de mais de 80 anos; com ela foi casado Manuel Francisco Lis­boa, filho do Aleijadinho. Existe há muitos anos no Rio de Janeiro, onde talvez ainda viva e exerça a marcenaria.

( ) Publicado no Jornal Correio Official de Minas, de Ouro Preto, números 169 e 170, de 19 e 23 de agosto de 1858.